O “troca-troca” pós-Carnaval: a dança das cadeiras nas escolas de samba do Rio

Igor Schulenburg

3/14/2025

A folia mal termina e já começam as movimentações nos bastidores do samba. Todo ano, logo após os desfiles do Carnaval carioca, inicia-se um “troca-troca” de profissionais entre as escolas de samba – uma verdadeira dança das cadeiras envolvendo carnavalescos, intérpretes, mestres de bateria e outros protagonistas do espetáculo. Esse vaivém frenético faz parte do calendário não-oficial do samba: o Carnaval de um ano mal acabou, e as agremiações já estão a todo vapor planejando o próximo​. Mas como surgiu esse fenômeno, por que ele acontece com tanta força, e qual o impacto dessas trocas na preparação dos desfiles seguintes? Vamos entender.

Como funciona e por que acontece o troca-troca

O “troca-troca” refere-se à movimentação de talentos de uma escola para outra logo após o Carnaval. Terminada a apuração e o Desfile das Campeãs, as escolas costumam reavaliar suas equipes e muitos contratos se encerram, abrindo espaço para mudanças imediatas. Vários motivos alimentam esse processo:

  • Balanço de resultados: Se a escola não obteve a colocação esperada ou cometeu erros, é comum que a diretoria procure sacudir a equipe. Trocar o carnavalesco ou o mestre de bateria, por exemplo, pode ser uma forma de corrigir a rota para o ano seguinte. Por outro lado, mesmo escolas campeãs às vezes enfrentam mudanças – seja por divergências internas ou porque profissionais de destaque recebem propostas melhores de outras agremiações.

  • Busca por melhoria e inovação: Cada profissional traz sua assinatura artística. Ao contratar alguém renomado, a escola espera aprimorar um quesito específico (como enredo, harmonia ou bateria) e ganhar fôlego novo na disputa. Às vezes, a simples mudança de ares motiva artistas a buscarem novos desafios e inspirações em outra escola.

  • Oferta financeira e profissionalização: No Carnaval atual, praticamente todos os cargos viraram altamente disputados no mercado. Escolas financeiramente fortes fazem propostas tentadoras a artistas consagrados de rivais – não muito diferente do que ocorre com técnicos de futebol ou executivos de empresas​.

Como resumiu uma colunista do samba, “hoje em dia tudo pode ser comercializado (puxadores, mestre salas, porta-bandeira, diretores de bateria, coreógrafos, diretores de harmonia, compositores e por aí vai)​”. Ou seja, vale quase tudo para montar o melhor time, e “quando o dinheiro fala, tudo cala”, diz o ditado no meio carnavalesco.

Os principais profissionais envolvidos nesse vaivém costumam ser: carnavalescos (criadores do enredo e do desfile), intérpretes (voz principal do samba-enredo), mestres de bateria (líderes dos ritmistas), casais de mestre-sala e porta-bandeira, além de coreógrafos, diretores de harmonia e até compositores. Todos podem entrar na mira de outras escolas caso se destaquem. Essa troca dinâmica virou parte da cultura do samba competitivo, acompanhada de perto pela mídia especializada e pelos torcedores das escolas.

Das origens à intensificação: do amor à camisa à era dos contratos

Nas primeiras décadas do Carnaval carioca, trocar de escola não era algo comum ou bem visto. As escolas de samba surgiram como extensões de comunidades, e muitos profissionais tinham relação quase familiar com suas agremiações. Quando alguém saía, geralmente era por desentendimentos internos ou mágoas pessoais, não por proposta financeira​. Houve casos em que brigas políticas geraram até o surgimento de novas escolas dissidentes, tamanha a paixão envolvida.

A mudança começou a se tornar mais comum a partir dos anos 1970, coincidindo com a profissionalização crescente dos desfiles. Até então, o único cargo realmente “transferível” era o de carnavalesco – afinal, esses artistas começaram a ganhar fama individual e a despertar cobiça. Um episódio marcante foi a saída repentina do carnavalesco bicampeão Joãosinho Trinta do Salgueiro para a então emergente Beija-Flor, em 1976​. Foi um divisor de águas: ficara provado que um talento consagrado podia mudar de bandeira e levar junto a receita do sucesso.

Dali em diante, com os desfiles cada vez mais grandiosos e profissionalizados, entrou em cena a lógica do mercado. O amor à camisa deu lugar a contratos e negociações. Escolas de menor porte passaram a investir em nomes renomados para crescer de status na elite do samba – na prática, “importando” prestígio e know-how para brilhar na Avenida. A máxima “santo de casa não faz milagre” virou justificativa para buscar fora aquilo que a prata da casa não estaria oferecendo. Nos anos 1980 e 90, esse movimento se intensificou: já não eram só carnavalescos, mas também mestres-sala e porta-bandeiras (a ponto de, em 1980, a liga retirar temporariamente esse quesito do julgamento por suspeita de ‘compra’ de casais nota 10 por outras escolas​), além de intérpretes e ritmistas premiados, todos entrando na roda das contratações.

Como resultado, virou rotina notar grandes nomes migrando. Antigamente, o intérprete principal carregava até o nome da escola no apelido – Neguinho da Beija-Flor, Jamelão da Mangueira, Dominguinhos do Estácio, etc. Essa era de fidelidade praticamente acabou: hoje, salvo raras exceções lendárias como o próprio Neguinho (que ficou 50 anos na Beija-Flor) e Jamelão, a maioria dos puxadores já cantou por diferentes pavilhões ao longo da carreira. O mesmo vale para outros segmentos, todos seduzidos por melhores condições de trabalho ou cachês mais gordos. Em suma, o que era esporádico virou parte integrante do jogo.

Disputas políticas, saídas dramáticas e impacto no planejamento

Nem sempre as mudanças ocorrem apenas por resultados ou dinheiro – a política interna das escolas também pesa. Cada escola de samba é uma entidade com presidentes, diretores e segmentos tradicionais, onde conflitos de ego e divergências de visão podem acontecer. Uma ala da diretoria insatisfeita, uma briga entre o carnavalesco e a presidência, ou mesmo a troca de comando na escola (eleição de um novo presidente) costumam resultar em dança das cadeiras. Nesses casos, mesmo profissionais vitoriosos podem sair devido a falta de alinhamento político. Da mesma forma, um ídolo pode deixar a agremiação se sentir que não foi valorizado. Recentemente, por exemplo, o primeiro casal de mestre-sala e porta-bandeira da Vila Isabel anunciou sua saída alegando falta de cuidado e carinho da direção, pouco depois de a escola ficar apenas em 8º lugar no Carnaval​. Esse desabafo público expõe como questões internas e orgulho ferido também motivam desligamentos inesperados.

Para o planejamento do Carnaval seguinte, todas essas mudanças representam um desafio. O desfile do ano que vem começa a ser desenhado praticamente na Quarta-Feira de Cinzas: é preciso definir enredo, começar a pensar nas fantasias e alegorias, organizar disputas de samba-enredo etc. Quando há troca de carnavalesco ou de qualquer líder de segmento, esse processo pode atrasar ou mudar de rumo. Por isso, as escolas procuram definir o mais rápido possível seus times. Tradicionalmente, logo após o Desfile das Campeãs, o mercado do samba entra em ebulição e as agremiações anunciam quem sai e quem fica em poucos dias ou semanas. Ainda assim, algumas demoram a se acertar – e cada dia de indefinição gera ansiedade na comunidade. Estar sem carnavalesco definido, por exemplo, é motivo de preocupação: sabe-se que as próximas escolhas podem impactar diretamente o desfile do próximo ano​. Afinal, um novo carnavalesco precisa de tempo para desenvolver um enredo original; um novo mestre de bateria precisa conhecer sua comunidade e preparar a bateria com antecedência; um intérprete recém-chegado terá que entrosar com os compositores durante a eliminatória de samba-enredo. Tudo isso exige cronograma. Quando as trocas se dão de forma turbulenta – digamos, uma demissão inesperada no meio do ano – o planejamento fica comprometido e a escola talvez tenha que correr contra o relógio para não deixar a peteca cair.

Exemplos recentes da dança das cadeiras

Nos últimos carnavais, o troca-troca tem rendido manchetes e conversas calorosas entre os sambistas. Em 2025, por exemplo, mal saíram os últimos foliões do Sambódromo e a imprensa já noticiava mudanças significativas. A então vice-campeã Grande Rio anunciou oficialmente a saída de seus carnavalescos, Gabriel Haddad e Leonardo Bora, nomes que haviam conquistado o primeiro título da escola poucos anos antes. Em questão de horas, o destino da talentosa dupla foi revelado: eles acertaram com a Unidos de Vila Isabel para assumir o lugar do veterano Paulo Barros no Carnaval de 2026​. Barros, por sua vez, despediu-se da Vila após resultados abaixo do esperado e rapidamente entrou no radar de outras escolas em busca de sua criatividade singular.

No mesmo fim de semana pós-Carnaval, outras agremiações também mexeram suas peças. A Beija-Flor de Nilópolis optou por manter seu carnavalesco campeão (João Vitor Araújo), garantindo a continuidade do trabalho vitorioso. Já escolas tradicionais como Portela, Mangueira e Salgueiro encontravam-se em aberto, à procura de novos profissionais para cargos-chave​ – uma situação que mobilizou especulações sobre possíveis contratações e reviravoltas. Até ícones encerraram ciclos: Neguinho da Beija-Flor, após 50 anos defendendo o samba da mesma escola, fez em 2025 seu desfile de despedida, deixando em suspense quem herdará o microfone principal de Nilópolis dali em diante​.

As baterias, coração rítmico das escolas, também participam desse vaivém. Não raro um mestre de bateria campeão recebe convite para comandar os ritmistas de uma coirmã concorrente. Ou, em sentido inverso, uma bateria que perdeu pontos no quesito pode trocar de mestre buscando evolução. A própria Mangueira, após um período de resultados irregulares, anunciou em 2022 a saída de seu mestre de bateria e a chegada de dois novos líderes para o comando rítmico, numa tentativa de renovar a famosa “Tem que respeitar meu tamborim”​. Movimentos assim exemplificam que do microfone ao surdo, todos os postos estão sujeitos à troca.

Esses casos ilustram um padrão: profissionais consagrados migram em busca de novos projetos, enquanto escolas batalham para montar “elencos” competitivos. E embora cada troca específica traga surpresa ou até polêmica entre os fãs, para o mundo do samba como um todo esse giro anual de cadeiras virou quase uma tradição extraoficial.

Estratégia, identidade e competitividade: o que está em jogo

Por trás de cada troca de profissional existe uma estratégia cuidadosa da escola de samba. A escolha de um carnavalesco ou de um intérprete não se resume ao talento individual – trata-se de alinhar o perfil desse artista à identidade da escola e às metas para o próximo Carnaval. Por exemplo, se uma escola tem histórico de enredos tradicionais e deseja inovar, pode buscar um carnavalesco conhecido por ousar e surpreender. Já uma escola que preza pela manutenção de sua essência pode preferir alguém cujo estilo case com sua história. A identidade visual e musical de uma escola pode mudar conforme a equipe muda: a chegada de um novo carnavalesco pode significar desfiles mais luxuosos ou mais criativos; um intérprete com timbre diferente dá uma “nova voz” à agremiação; um mestre de bateria vindo de outra comunidade pode incorporar novas batidas ou convenções no ritmo.

Nesse xadrez do samba, as escolas do Grupo Especial disputam não só campeonatos na Avenida, mas também uma espécie de campeonato de contratações nos meses anteriores. Um acerto bem planejado pode elevar o patamar competitivo de uma agremiação. Não por acaso, é comum ver escolas menores tentando alçar voos mais altos ao trazer um nome estrelado para suas fileiras – seja um carnavalesco campeão ou um casal de mestre-sala e porta-bandeira ganhador de prêmios – na expectativa de ganhar respeito imediato de jurados e holofotes da mídia​. Quando um profissional top de linha veste uma nova camisa, atrai também patrocínios, reforça a confiança da comunidade e intimida adversários. Em outras palavras, a competitividade de um desfile começa muito antes do Carnaval, nas escolhas de quem o irá criar e conduzir.

Claro que toda essa movimentação traz riscos. Contratar a peso de ouro não garante título – é preciso haver química com a comunidade e trabalho coletivo. Há casos de profissionais que trocaram o certo pelo duvidoso, seduzidos pelas cifras, e acabaram enfrentando dificuldades de adaptação ou resultados abaixo do esperado, levando ao arrependimento​. Por isso, algumas escolas equilibram a ambição com cautela: mantêm equipes campeãs para preservar a fórmula de sucesso, ou promovem pratas da casa a posições de destaque para valorizar a identidade local. Outras arriscam em mudanças drásticas acreditando que, para evoluir, é preciso mesmo renovar.

No fim das contas, o “troca-troca” pós-Carnaval tornou-se parte fundamental do ciclo carnavalesco. Ele reflete a profissionalização do samba, a pressão por excelência e as paixões que movem cada agremiação. Entender esse fenômeno é mergulhar nos bastidores do Carnaval e perceber que, antes mesmo de o próximo samba-enredo ser entoado na Avenida, uma disputa silenciosa – porém acirrada – já esteve em curso nos barracões e quadras. É ali, nessa preparação estratégica repleta de idas e vindas, que muitas vezes começa a se desenhar quem serão os grandes destaques e, quem sabe, os campeões do Carnaval seguinte.